11/08/2013 - Correio Braziliense
Organização das Nações Unidas pede que o Senado analise a proposta que determina o confisco de terras em que haja trabalhadores explorados
Grasielle Castro
A relatora especial sobre as formas contemporâneas de trabalho escravo do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Gulnara Shahinian, entregou na sexta-feira aos senadores brasileiros uma carta em que condena a demora do país em reforçar as medidas de combate ao trabalho escravo, principalmente a morosidade para levar ao plenário a proposta de emenda à Constituição (PEC) 57, conhecida como PEC do Trabalho Escravo. Além de reforçar a legislação atual, a proposta, que tramita desde 1995, quando foi apresentada pela primeira vez, estabelece o confisco da terra onde for encontrado trabalho escravo. O texto final está pronto e aguarda a análise pelo plenário desde 2 de julho.
Advogada armênia, Shahinian destaca que, em 2010, quando ela esteve pela primeira vez no Brasil, o país exibia um cenário positivo para a votação da PEC, que, se aprovada, traria proteção e restauraria a dignidade e a justiça para as vítimas. “Eu estava orgulhosa por ter sido convidada para acompanhar um grupo de senadores que coletava assinaturas de apoio em todo o país”, relata. Segundo ela, entretanto, quase três anos depois, as discussões sobre o tema não avançaram.
Gulnara também chama a atenção para o debate em torno da definição do trabalho escravo, que tem sido contestada pela bancada ruralista no Congresso. Na carta, a relatora ressalta que apoia o entendimento atual, que privilegia a proteção aos direitos básicos dos trabalhadores, como liberdade e condições dignas para exercer a função. Na opinião dela, o problema com a lei não é a definição do conceito, mas a implementação da norma. “Essa discussão sobre a redefinição do conceito de escravidão diminuiu o ritmo da adoção da PEC 57, que é muito esperada por muitos homens, mulheres e crianças que trabalham em regime de escravidão na agricultura.”
Outra preocupação da representante da ONU é em relação ao ritmo das operações policiais. “Nas minhas reuniões, tenho enfatizado a necessidade da aplicação mais rigorosa da lei e de se intensificar as ações da Polícia Federal para investigar e registrar casos contra os autores do trabalho escravo”, diz trecho da carta.
Potencial
Apesar de mencionar que houve progresso nos últimos anos, no fim do documento, a advogada destaca que o Brasil tem grande potencial para erradicar a escravidão e oferecer a proteção necessária aos trabalhadores que hoje são submetidos a essas condições. “Essas pessoas não podem esperar. Escravidão não pode estar presente nem pode continuar existindo para o povo do Brasil. Todo esforço deve ser feito para erradicá-la.” Dados do Ministério do Trabalho mostram que, de 1995 até o ano passado, 44,4 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados no país.
O senador Paulo Paim (PT-RS) reconhece que a discussão em torno do conceito de escravidão pode atrasar ainda mais a votação da proposta. Segundo ele, foi feito um acordo para a PEC ser votada com a regulamentação de um novo conceito do que efetivamente é considerado trabalho escravo. “Será formada uma comissão que escreverá um anteprojeto com o conceito e tudo será votado no mesmo dia. Por isso, acho que pode ter uma certa morosidade. Acredito que, se houver vontade política, pode ser votado ainda este ano. Mas, hoje, eu diria que está mais fácil votar outros projetos, como o fim do voto secreto, que também é um tema polêmico, do que a PEC do Trabalho Escravo”, avalia o parlamentar.
Entrevista Gulnara Shahinian
Muito trabalho a ser feito no país
O Brasil aboliu a escravidão há 125 anos, mas ainda há muitas marcas desse tipo de trabalho na história recente do país. Como está a situação hoje?
Existem muitos progressos e, na maioria, estão relacionados ao aumento da conscientização entre os empregados e patrões, ao fortalecimento da efetividade dos programas de combate ao trabalho escravo, além da diminuição do abismo entre os programas e a implementação. As condições de trabalho têm melhorado, mas pode ser melhoradas ainda mais, principalmente, nas acomodações para os trabalhadores e no acesso à saúde. Apesar do progresso, muitos trabalhadores ainda têm sido resgatados e libertados.
O que torna as pessoas vulneráveis a esse tipo de exploração?
Pobreza, falta de alternativas, analfabetismo e desemprego fazem com que as pessoas se tornem presas fáceis para os recrutadores. De acordo com o Ministério do Trabalho, esses trabalhadores estão principalmente na pecuária e na agricultura de larga escala.
Qual é o perfil desses trabalhadores?
Esse fenômeno afeta principalmente homens de baixa renda, com idade entre 15 e 40 anos. A grande maioria está em condição de servidão, trabalhando para pagar a dívida (com os patrões). Eles não têm condições de deixar o trabalho nem tem essa permissão. Há casos em que chegam a ser vigiados por cães de guarda e homens armados e sofrem constantes ameaças de violência contra a família, o que faz com que seja impossível escapar. Depois de libertados, muitos têm dificuldade de se reintegrar à comunidade. Para quem está nessas condições em que a lei vai dar mais proteção e justiça, cada dia conta.
Há três anos, a senhora disse que o fato de o Brasil discutir sobre essas condições significava que o país estava consciente do problema, mas não vemos grandes avanços. O Brasil está sendo omisso?
Existe um importante progresso, como a Lei Bezerra, em São Paulo, que determina a cassação da inscrição no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de empresas flagradas com trabalho escravo. O mais importante é que essa norma está sendo copiada. É fundamental a tolerância zero à escravidão em todo o país. Eu valorizo a força de vontade do governo para erradicar a prática, mas acho que ainda há muito a ser feito para punir os criminosos. Os programas de proteção e de reintegração devem ser reforçadas, e as vítimas devem ser incluídas em programas de recuperação e de capacitação.
Como é a relação da sociedade de consumo em relação ao trabalho escravo?
Cada vez mais, as pessoas são informadas dos produtos que consomem e que são feitos por trabalhadores explorados como escravos. E reconhecem que, ao serem indiferentes e continuarem comprando esses produtos, investem no fortalecimento da escravidão. Temos que entender que isso toca a vida de todos. Quantos de nós nos perguntamos quem faz as joias e as roupas? Nós aproveitamos os frutos baratos da escravidão, ao dizer, para nós mesmos, que a exploração acontece “lá”, e nada tem a ver com o nosso próprio país ou comunidade.
Não é controverso que os países apresentem altos índices de crescimento e melhoria nos indicadores sociais, mas ainda contam com esse tipo de exploração?
A escravidão é uma violação absoluta dos direitos humanos das pessoas e erradicá-la para sempre deve ser prioridade para o mundo inteiro. Não é possível falar em democracia, desenvolvimento, prosperidade e futuro se houver casos, como o de crianças que ainda nascem para a escravidão, que precisam trabalhar para pagar as dívidas dos antepassados. A escravidão não acabou quando foi legalmente abolida.
Texto publicado originalmente no Correio Braziliense